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Perda de controle em voo (LOC-I)



Por Alexander Coelho Simão*


1. Introdução


A perda de controle em voo, conhecida no cenário internacional como loss of control in-flight (LOC-I), refere-se a ocorrências em que os pilotos não conseguiram manter o controle da aeronave em voo, resultando em desvio irrecuperável da trajetória pretendida. De acordo com dados disponibilizados pela International Air Transport Association (IATA), acidentes tipificados como LOC-I foram responsáveis por 2.462 fatalidades na aviação regular entre os anos de 2009 e 2018.


Resumidamente, este artigo tem por objetivo apresentar os resultados obtidos pelo CENIPA na investigação da perda de controle em voo de uma aeronave de transporte regular, ocorrido nas proximidades da Terminal Salvador, em 26JUL2013.


2. Relatório Final IG-136/CENIPA/2013 - Lições Aprendidas


2.1 Histórico da ocorrência


A aeronave decolou do Aeródromo Internacional Zumbi dos Palmares (SBMO), Maceió, AL, com destino ao Aeródromo Deputado Luís Eduardo Magalhães (SBSV), Salvador, BA, às 21h10min (UTC), a fim de transportar pessoal, com 4 tripulantes e 58 passageiros a bordo.


Durante o voo em rota, no FL 160, houve redução progressiva da IAS de 202 kt para 184 kt, em decorrência do gelo acumulado na aeronave e não eliminado devido ao não acionamento do sistema de de-icing.


Em seguida, ocorreu forte vibração na aeronave e os manetes de potência foram reduzidos em ambos os motores. Isso acarretou a diminuição da IAS de 184 kt para 158 kt (a velocidade operacional mínima em condições de gelo correspondia a 161 kt), o piloto automático foi desacoplado e a atuação nos comandos levou ao aumento do AOA, acarretando a ativação do stick shaker e do stick pusher e a perda de controle da aeronave.

A tripulação não aplicou o procedimento de recuperação de stall conforme previsto em manual (empurrar o manche firmemente, baixando os flaps para 15º e aplicando potência máxima - MCT).


Durante a perda de controle, as ações na cabine ficaram conturbadas, e as variações de grande amplitude nos comandos de voo realizadas pelo comandante acarretaram o desacoplamento dos painéis do profundor.


Às 22h00min40s (UTC), quando a aeronave cruzava o FL110, o comandante solicitou ao copiloto que cortasse o motor e este questionou se deveria cortar os dois motores. Não obtendo resposta, o copiloto selecionou os dois motores para flight idle e informou ao comandante que havia cortado os dois motores. Essa ação foi consequência de uma percepção equivocada de que a vibração na aeronave seria consequência de um disparo de hélice.


Após alguns segundos, o copiloto questionou se poderia “acionar os motores”, sendo orientado pelo comandante a acionar o motor nº 1. A hélice do motor nº 2 permaneceu embandeirada por 35 segundos.


Em seguida, o manete de potência do motor nº 1 foi movido gradualmente para 75º enquanto o manete de potência do motor nº 2 permaneceu em flight idle. A velocidade aumentou para valores acima de 180 kt. Durante esse período, o empuxo assimétrico dos motores foi compensado pelo leme. Em seguida, o manete de potência do motor nº 2 foi movido para a frente e, finalmente, ambos os manetes de potência foram ajustados simetricamente. O voo se estabilizou em condições normais no FL110, com TAT acima de 10ºC.


Considerando os dados do DFDR, inferiu-se que o desacoplamento das superfícies do profundor ocorreu em consequência da atuação nos comandos de voo pelo comandante no sentido de “cabrar” (na tentativa de reverter a diminuição do ângulo de arfagem), associado ao acionamento do stick pusher (que leva o nariz da aeronave a “picar”).


Após alguns comentários sobre o acionamento do pitch disconnect e as condições dos motores, os tripulantes constataram que ambos os motores estavam operando normalmente e decidiram prosseguir para pouso em SBSV com velocidade reduzida.


O APP-SV foi informado pelo comandante sobre a normalização das condições de voo. Após, reportou aos passageiros que haviam tido uma condição de vibração em uma das hélices da aeronave e informou que estavam prosseguindo para pouso em Salvador, BA. O pouso em SBSV foi realizado sem maiores problemas.


2.2 Fatores contribuintes


Aplicação dos comandos


A redução de potência em ambos os motores, associada à tentativa de manter voo nivelado acarretaram: a diminuição da IAS para valores abaixo da velocidade mínima de operação nas condições encontradas, o aumento do ângulo de ataque, e a subsequente ativação dos sistemas de proteção contra stall.


Condições meteorológicas adversas


As condições meteorológicas verificadas no nível e na rota do PP-PTU, sem que a aeronave estivesse com o sistema deice ativado, acarretaram acúmulo de gelo e uma perda significativa de velocidade aerodinâmica. Essa condição, agravada por uma atuação inadequada nos comandos de voo levou a aeronave à condição de stall.


Coordenação de cabine


Verificou-se que houve ineficiência no aproveitamento dos recursos humanos disponíveis para operação da aeronave, em virtude de gerenciamento inadequado das tarefas afetas a cada tripulante por confusão na comunicação, haja vista a interpretação equivocada com relação à necessidade do corte dos motores durante a ocorrência.


Julgamento de pilotagem


Houve inadequada avaliação, por parte da tripulação, dos parâmetros relacionados à operação da aeronave, no que tange ao não acionamento do sistema de-icing para as condições de formação de gelo apresentadas, assim como com relação ao uso dos comandos de voo ao tentar contrariar a atuação do stick pusher em uma situação de stall.


Percepção


Durante o voo, houve uma percepção imprecisa do impacto das condições de ice accretion (acúmulo de gelo) na operação aérea, o que concorreu para que a tripulação mantivesse o voo em condições desfavoráveis e não percebesse a ocorrência do stall provocado pelo acúmulo de gelo.


Processo decisório


Houve uma avaliação inadequada acerca dos fatores que impactaram no desempenho da aeronave, o que prejudicou o reconhecimento da condição de severe icing (gelo severo) e resultou na adoção de medidas equivocadas para o gerenciamento daquela situação adversa.


3. Upset Prevention and Recovery Training (UPRT)


Entre 2001 e 2011, acidentes aéreos resultantes de perda de controle em voo (LOC-I) foram a principal causa de fatalidades na aviação comercial.


Em razão disso, várias iniciativas foram desenvolvidas com o objetivo de reduzir o número de LOC-I. Comitês e grupos de trabalho foram formados para estudar tendências da indústria de aviação, avanços em tecnologia de simulação, requisitos de treinamento, projetos de equipamentos e desempenho humano.

Em 2012, a ICAO e a FAA trouxeram muitos desses grupos para participarem conjuntamente das discussões do recém-criado Comitê de Treinamento de Recuperação e Prevenção de Perda de Controle, Loss of Control Avoidance and Recovery Training (LOCART).


Os estudos desenvolvidos pelo LOCART demonstraram que algumas práticas consagradas na aviação eram não apenas ineficazes, mas, também, contribuíam para respostas inadequadas em algumas situações de voo.


Por exemplo, em certos casos, as técnicas aplicadas no treinamento de stall eram baseadas na capacidade de o piloto obter a recuperação com perda mínima de altitude.


Isso resultou em práticas que enfatizavam a aplicação rápida de potência com o mínimo de redução do AOA para minimizar a perda de altitude em vez de valorizar a importância de reduzir o AOA para restaurar, efetivamente, a capacidade de as asas gerarem sustentação.

Ações foram tomadas tanto pelos reguladores quanto pelas escolas de aviação para corrigir tais procedimentos, com novos padrões de treinamento, enfatizando que a recuperação eficaz requeria, acima de tudo, redução imediata do ângulo de ataque. As tripulações, também, deveriam estar cientes de que essa redução do AOA, sempre que o avião se encontrar em estado de baixa energia nas operações em grandes altitudes, poderia, até mesmo, exigir perda substancial de altitude para garantir recuperação efetiva.


A análise dos dados de acidentes LOC-I indicou que os fatores contribuintes para esse tipo de ocorrência podem ser categorizados como sendo induzidos pelos sistemas do avião, fatores ambientais, pilotos, ou qualquer combinação desses três fatores. Dos três, os acidentes induzidos pelo piloto representaram o fator contribuinte mais frequentemente identificado, principalmente resultante da aplicação de procedimentos incorretos, incluindo informações de controle de voo inadequadas; desorientação dos tripulantes; má gestão da energia da aeronave; distração de um ou mais membros da tripulação; e treinamento inadequado.


A iniciativa LOCART resultou nas seguintes recomendações para a implementação de melhorias nas práticas de treinamento existentes, que mais tarde vieram a integrar um programa abrangente de treinamento de prevenção e recuperação de atitudes anormais (UPRT):


a) fornecer treinamento acadêmico abrangente que cobrisse o amplo espectro de questões relacionadas a atitudes anormais nos estágios iniciais de aprendizagem do piloto comercial, durante o treinamento de qualificação de tipo, bem como ao longo de toda a carreira profissional do piloto em intervalos regulares de treinamento;


b) fornecer treinamento específico de UPRT em voo real durante a obtenção de licença de piloto comercial (em aviões leves capazes de realizar as manobras recomendadas, mantendo margens aceitáveis de segurança);


c) fornecer treinamento de prevenção e recuperação de atitudes anormais em dispositivos de treinamento de simulação de voo;


d) fornecer cenários de treinamento envolvendo condições que possam resultar em atitudes anormais como parte da qualificação de tipo e exercícios de treinamento recorrentes em simuladores específicos do tipo de aeronave;


e) implementar padrões que exijam que o UPRT seja ministrado por instrutores devidamente qualificados e competentes; e


f) implementar padrões que exijam que o treinamento de prevenção e recuperação de atitudes anormais em simuladores seja conduzido em dispositivos devidamente qualificados (utilizando o mais alto nível de fidelidade disponível).


 

*Alexander Coelho Simão é Cel Av da FAB, trabalha na Divisão de Investigação e Prevenção (DIP) do CENIPA e possui mestrado em Segurança da Aviação e Aeronavegabilidade Continuada pelo ITA.


Texto originalmente publicado no ASAGOL Safety News 15.

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