O tripulante de aeronaves está ocupacionalmente exposto a diversas fontes de radiações ionizantes, entre elas a radiação cósmica, que pode expor o tripulante brasileiro a uma dose efetiva entre 1,46 e 3,37 mSv/ano, segundo simulações que efetuamos com as escalas de voo de duas empresas brasileiras, utilizando o aplicativo CARI-6 do FAA (Administração Federal de Aviação). Esta estimativa não levou em consideração fontes adicionais como solar storms, lightnings, TGFs, procedimentos de security em aeroportos e outras, que podem elevar ainda mais estes valores.
Para um melhor dimensionamento desta exposição, comparamos com a dose recebida em um raio-X de tórax (cerca de 0,1 mSv) e chegamos a valores de dose equivalentes entre 15 a 34 raios-X de tórax recebidos anualmente pelo aeronauta brasileiro, voando cerca de 800 horas/ano em aeronaves a reação.
A nível mundial, existem estimativas como a da UNSCEAR (Comitê Científico Das Nações Unidas Sobre Os Efeitos Da Radiação Atômica) que estipulam limites entre 1,2 a 7 mSv/ano. ICAO, IATA e IFALPA apresentam valores médios de 2 mSv/ano para voos domésticos ou de curta duração e 5 mSv/ano para tripulações engajadas em programações de voos internacionais de longo curso.
A dose de radiação cósmica recebida pelo tripulante varia em função da altitude, latitude, atividade solar e duração do voo. A atmosfera terrestre oferece alguma proteção aos raios cósmicos, porém, acima de 25.000 ft, a dose efetiva dobra a cada 6.000 ft de altitude.
O campo magnético terrestre também oferece alguma atenuação dos raios cósmicos e nos Polos, onde o campo é menor, a dose é de 3 a 5 vezes maior que no Equador. Por este motivo, voos cruzando pelos polos devem cumprir uma série de regulamentos visando resguardar os ocupantes de uma aeronave de doses elevadas de radiação em caso de explosões solares. O fator comunicações também é primordial nestes casos, visto que acima de 820N da latitude 82oN, a comunicação é feita por radio HF, suscetível de falhas durante tempestades solares.
Lembramos que a dose recebida de radiação ionizante é cumulativa, ou seja, não diminui com o passar do tempo, somente aumenta. Ao longo de 30 ou 40 anos de carreira, estes valores de dose podem atingir cifras significativas, aumentando o risco de efeitos somáticos e genéticos. É importante salientar a diferença entre raios ultravioleta (UV-A, UVB), que podemos atenuá-los com um filtro solar e a radiação cósmica, que é altamente energética e penetrante, está presente dia e noite e para a qual não existe proteção tecnicamente viável a bordo.
A radiação ionizante pode danificar o nosso DNA e gerar radicais livres, aumentando o risco de desenvolver câncer, cataratas, distúrbios cardiovasculares e defeitos genéticos nos descendentes. A medicina cada vez mais atribui a etiologia de diversas doenças aos radicais livres e risco zero somente com dose zero.
É imprescindível que as gestantes tenham informação sobre os riscos ao feto resultante da exposição à radiação em voo, que podem levar ao aborto nas primeiras semanas e gerar malformações no feto. A legislação brasileira (CNEN) estipula o limite de 1 mSv durante toda a gestação. A ANAC inclusive suspende o CMA de tripulantes grávidas.
A ciência não tem uma explicação do porquê algumas pessoas expostas à radiação desenvolvem o câncer e outras não. O fato de uma pessoa ser exposta não significa que necessariamente desenvolverá uma doença.
O documento DOT/FAA/AM-03/16 do FAA, What Aircrews Should Know About Their Occupational Exposure to Ionizing Radiation, apresenta diversas tabelas dos riscos somáticos e genéticos em função da exposição à radiação e é leitura recomendada para todo o tripulante.
Centenas de documentos e pesquisas científicas foram efetuadas e podem ser acessadas nos sites do FAA, NASA, IATA, IAEA, UNSCEAR, ICRP e outros, para maior informação. Na área médica, dezenas de pesquisas envolvendo o tripulante e a radiação podem ser acessados pela rede PUBMED do governo americano.
Em nosso livro, “O Tripulante de Aeronaves e a Radiação Ionizante”, além de apresentarmos um apanhado geral destas pesquisas, relacionamos cerca de 70 referências para facilitar o aprofundamento dos estudos na área.
Essa exposição ocupacional do tripulante à radiação ionizante é fato reconhecido por diversos países e organismos internacionais desde a década de 90. No Brasil, o organismo responsável pelo reconhecimento de qual categoria profissional está exposta à radiação ionizante é a CNEN - Comissão Nacional de Energia Nuclear, que em suas normas e disposições, não reconhecem explicitamente a exposição do tripulante brasileiro, embora não a excluam.
Para deixar a norma mais clara, um grupo de entidades constituído pela ASAGOL, SNA, ATL, ABRAPAC e ACR Consultoria Aeronáutica, solicitou à CNEN o aperfeiçoamento do arcabouço regulatório envolvendo a matéria. Este pleito levou à criação pela CNEN, em 2018, de um grupo de trabalho para sugerir uma regulamentação de proteção radiológica para o aeronauta brasileiro.
Deste grupo, denominado GTAero, participaram as quatro entidades representativas dos aeronautas (ASAGOL, ABRAPAC, ATL e SNA), assessorados pela ACR Consultoria e com a participação da ANAC, ABEAR, DCTA/IEAv, além dos cientistas da própria CNEN.
O GTAero concluiu os trabalhos em outubro de 2018, recomendando a adoção de uma Regulamentação de Proteção Radiológica do Aeronauta brasileiro, na forma de uma posição regulatória para a Norma CNEN existente e aguarda-se para 2019 uma formalização desta recomendação.
Concluindo, a exposição à radiação ionizante faz parte da vida do tripulante e pela natureza das radiações e partículas recebidas em voo, altamente energéticas e penetrantes como os nêutrons, não há como blindar a aeronave. Tecnicamente é impossível, por exemplo, bloquear os cerca de 2.400 nêutrons/por segundo/por m2 que recebemos nas altitudes de voo das atuais aeronaves. Para reduzirmos esta dose em apenas 20%, teríamos que acrescentar na aeronave uma blindagem de cerca de 300 kg/m2, o que evidentemente inviabilizaria o voo.
Não obstante, embora em outras áreas a tendência seja de diminuição da exposição, para o aeronauta a derivada é positiva, pois cada vez as aeronaves estão voando mais alto e mais longe.
Para o tripulante, sugere-se quando possível, optar por equipamentos ou tipo de voos de menor exposição, planejar uma antecipação da aposentadoria (algo bastante difícil), evitar ao máximo exames de raios-X (especialmente tomografias) e principalmente desenvolver bons hábitos de vida e alimentação saudável.
Sobre o Autor
Amilton Camillo Ruas é Comandante de B737NG, Bacharel em Aviação Civil e credenciado em Prevenção de Acidentes pelo CENIPA. Possui o curso de Airport Wildlife Hazard Training Refresher da Embry-Riddle Aeronautical University. É autor do Manual de Prevenção de Colisões com a Fauna e do Plano de Prevenção de Colisões com a Fauna para Empresas Aéreas.
Texto originalmente publicado no ASAGOL Safety News 9. Para ler a edição completa clique aqui.