Nesta segunda parte da entrevista, o Cmte. Fábio Goldenstein comenta o atual momento da automação na aviação mundial. Além de explicar esse conceito e sua aplicação na área, ele expõe os elementos motivadores, evolução nos últimos anos e as diferentes formas de utilização nas operações.
No entanto, apesar de ressaltar elementos positivos, ele também chama a atenção para possíveis problemas que podem ser gerados com o excesso de processos automatizados. O comandante cita a dependência dos pilotos às novas tecnologias, complacência, pressão pelo aumento das jornadas de trabalho, maior presença de casos de fadiga, entre outros fatores.
Ele ainda comentou a automação do ponto de vista das empresas e os novos procedimentos adotados, conforme o avanço da tecnologia e dos sistemas operacionais nas últimas décadas.
Ouça as duas partes da entrevista:
Confira a segunda parte da entrevista com o Cmte. Goldenstein para o nosso canal Safety Window:
ASAGOL – Você permaneceu 50 anos de sua vida se dedicando à aviação, em sua visão, como podemos conceituar a automação nessa área?
Cmte. Goldenstein – Em um sentido mais amplo, poderíamos dizer que automação é a realização de tarefas através de dispositivos mecânicos e/ou eletrônicos em substituição ao trabalho humano. Do ponto de vista da aviação de transporte estamos falando da possibilidade de executar tarefas mais elaboradas e complexas dessa forma, normalmente assistidas pelo piloto.
A introdução desses sistemas trouxe diversas consequências no trabalho dos tripulantes técnicos, a começar pela diminuição do número de tripulantes em alguns tipos de aeronaves.
Os sistemas anteriormente assistidos e operados por um terceiro profissional passaram a funcionar em modo automático, sem a operação dos pilotos nos seus “modos normais”.
ASAGOL – Em sua opinião, o que motivou o emprego da automação nas operações de voo?
Cmte. Goldenstein – Pressão econômica, claro. As pesquisas tecnológicas em geral surgem a partir de novas demandas. As tecnologias passam a ser disponibilizadas para pagar os seus elevados investimentos em pesquisa e a indústria acaba ganhando dinheiro com isso.
O transporte aéreo não é exceção. O desenvolvimento tecnológico permitiu, inicialmente, a redução de tripulantes dentro das cabines. Em um segundo momento, a necessidade de acomodar cada vez mais aviões dentro do espaço aéreo obrigou os novos projetos a integrarem sistemas de controle multifuncionais.
Como é o caso dos pilotos automáticos de hoje quando comparados aos dos aviões analógicos de primeira e segunda gerações.
ASAGOL – Você acha que atualmente os elementos motivadores do uso da automação foram eliminados?
Cmte. Goldenstein – Eu acredito que estes elementos nunca serão eliminados. A indústria busca lucro e segurança, que se alternam nas prioridades, ininterruptamente. É isto que estamos assistindo agora, de uma certa maneira, parece que avançamos muito na busca pelo lucro e estamos passando por um momento que nos obriga a refletir mais sobre as questões de segurança.
Por um outro lado, o transporte aéreo tem uma previsão de crescimento muito grande para os próximos 20 ou 30 anos, a indústria precisará atender essa demanda e formar os profissionais que serão os operadores destas aeronaves. A partir deste fato, há alguns pontos de vista diferentes.
Há quem acredite e defenda que a automação é a maneira mais simples e barata de se substituir pilotos experientes e há quem defenda que mais automação não é, necessariamente, a solução necessária.
ASAGOL – Quais problemas podem surgir por conta do alto grau de automação oferecido aos pilotos?
Cmte. Goldenstein – Inicialmente, eu diria que a complacência é o primeiro grande problema direto, mas entender essa complacência não é simples.
O piloto tem um nível muito grande de automação nas funções de controle da aeronave, no entanto, por mais estranho que possa parecer, essa carga de trabalho pode aumentar muito se as operações saírem do modo ideal programado.
Esse fato acontece o tempo todo dentro das áreas terminais cada vez mais congestionadas, aumentando a carga de trabalho dos pilotos e controladores de voo.
Uma outra questão é que uma parte significativa das informações do funcionamento dos sistemas foi “suprimida” dos manuais operacionais. Os fabricantes disponibilizam apenas aquilo que eles apresentam como “operacionalmente necessário”. Isto ajuda a disseminar o conceito de que a formação e a experiência de um piloto pode ser barateada com a implementação cada vez maior das novas tecnologias.
ASAGOL – Esse avanço da automação pode gerar dependência da tecnologia?
Cmte. Goldenstein – É importante destacar que, no passado, havia o conceito de que “o piloto tinha que estar à frente do avião”. A tecnologia disponível a bordo fazia com que o alerta situacional dos pilotos estivesse sempre muito elevado, já que o avião dependia mais do contato direto com a máquina, fosse para pilotar ou para navegar.
Hoje em dia, a falta desse contato direto degrada a capacidade de percepção do comportamento do avião pelos pilotos, tornando-os cada vez mais dependentes dos sistemas automáticos.
Se por um lado nossas atividades a bordo alcançaram um nível alto de eficiência e complexidade, por outro passamos a ter incidentes e acidentes, nos quais ficou evidenciado o problema gerado por esse distanciamento. De alguma maneira a industria precisa dar um passo atrás, naquilo que é denominado “back to basics”.
ASAGOL – Qual é a sua opinião sobre o atual momento da aviação e esse cenário de automação, do ponto de vista do tripulante técnico?
Cmte. Goldenstein – Um amigo meu, que também é piloto, comentou certa vez que estamos diante de uma situação anteriormente vivida no transporte ferroviário. A grande expansão dos trens no final do século XIX e início do século XX mudou completamente as características do trabalho, ao ponto em que hoje o maquinista “assiste” uma operação controlada à distância por meio de centrais de comando ao longo das linhas férreas.
A aviação vive hoje uma grande expansão. A necessidade de milhares de novos profissionais para os postos de trabalho não consegue ser satisfatoriamente preenchida, seja pelas escolas de formação, que não conseguem atender a demanda, seja porque a profissão de piloto já não desperta mais o mesmo interesse de antes nos oficiais das forças armadas em busca de oportunidades civis. A profissão de piloto se internacionalizou e nós mesmos somos grandes exportadores de mão de obra qualificada.
Esses fatores obrigaram as empresas a adotarem limites mais elevados nos seus procedimentos operacionais, aquilo que muitas vezes os pilotos mais antigos denominam de “engessamento dos SOP´s”.
ASAGOL – Quais soluções foram propostas para mitigar os problemas gerados pelo excesso de automação?
Cmte. Goldenstein – Estamos caminhando para possíveis soluções que ajudem a mitigar os problemas. Ao mesmo tempo que as empresas adotam o “engessamento dos SOP´s”, ocorre também a implementação de programas de análise de dados de enorme relevância, como o FOQA.
Entretanto, a indústria busca mais evitar do que entender a natureza dos erros e desvios que ocorrem cotidianamente. A maneira como esses programas foram implementados em algumas localidades levaram os pilotos a temerem excessivamente as consequências do monitoramento, passando a operar cada vez mais por meio da automação.
Neste momento estamos diante de um sério desafio. Após a análise de acidentes recentes, foi concluído que as diferenças culturais entre operadores não representaram o motivo. A conclusão colocou em dúvida até que ponto as estatísticas podem mesmo substituir a redundância.
Os fabricantes e autoridades responsáveis estão sendo questionados e obrigados a reverem seus processos de certificação, manuais operacionais e normas de treinamento. Talvez seja hora de dar mesmo um passo para trás.
ASAGOL – Além de possíveis problemas de segurança, que outros fatores podem ser gerados pela elevada automação de processos?
Cmte. Goldenstein – O nível de segurança das operações atingiu uma marca muito expressiva. As aeronaves de nova geração são capazes de realizar operações muito mais complexas do que aquelas que eram realizadas há algumas décadas, com aeronaves analógicas. Isso tudo trouxe para a indústria uma ideia de que os pilotos se tornaram “operadores” de sistemas e a confiabilidade dos equipamentos é maior do que a necessidade de redundância.
Esta visão das coisas a partir de estatísticas tem dado ensejo a uma enorme pressão para aumentar as jornadas de trabalho, número de setores (pousos e decolagens) e redução do número de tripulantes a bordo. A fadiga é hoje uma séria ameaça à segurança de voo e voltamos aqui à questão da complacência, agravada por esse problema mundial.
Tenho conversado com pilotos que voam em diferentes países e que estão engajados em todos os tipos de operações: voos longos, curtos, transpolares, fusos horários etc. A queixa é sempre a mesma em relação às escalas e fadiga. A pressão das empresas neste cenário de enorme competitividade tem sido a mesma e as entidades representativas dos profissionais do setor nem sempre têm conseguido sucesso na abordagem desta questão nos contratos de trabalho.
Aqui no Brasil uma equipe de pilotos conseguiu desenvolver uma importante ferramenta de aferição da fadiga – o Fadigômetro – que tem tudo para se tornar um projeto a ser implementado em outros países também, o que demonstra a capacitação dos nossos profissionais para se engajar nas discussões por novas alternativas.
Perdeu a primeira parte da entrevista?
Essa edição do Safety Window com o Cmte. Goldenstein foi dividida em duas partes. A primeira delas tratou de sua carreira na aviação e o que ele presenciou em seus 50 anos dedicados à carreira de piloto. Para conferir, clique aqui.
Nesta segunda parte, o comandante citou a importância do Fadigômetro. Conheça mais desse projeto, pioneiro na aviação mundial, e ajude a coletar informações para o seu avanço: https://www.fadigometro.com.br/.
História em fotos: confira a seguir um pouca da carreira do Cmte. Goldenstein, nas imagens que ele gentilmente nos cedeu!
Parabéns Fabio.
Muita hora de voo, conhecimento e inteligência.
Tudo de bom.