Contribuições da psicologia para o retorno seguro das operações
Por Márcia Regina Molinari Barreto
O gerenciamento da crise desencadeada pela pandemia da COVID-19, que tão severamente impactou o transporte aéreo em 2020, ainda é um desafio significativo para todos os envolvidos com o setor. Com a evolução da situação sanitária, gradativamente, os voos foram retomados, porém, até que a pandemia seja controlada, muitas incertezas ainda permanecem e estão relacionadas, por exemplo, à ocorrência de novas ondas da doença, à eficácia e disponibilidade de vacinas, às restrições às viagens e à percepção do usuário quanto à segurança sanitária das viagens aéreas.
A segurança constitui-se em um dos pilares fundamentais da atividade aérea. As mudanças impostas ao contexto operacional pela pandemia são fatores que contribuem para o surgimento de novos perigos à segurança, assim, para o retorno seguro das operações, é importante que esses novos riscos sejam avaliados e controlados de forma eficaz. Neste sentido, recomendações têm sido publicadas com foco na adoção de medidas preventivas e mitigadoras dos riscos ao desempenho humano, decorrentes do impacto da crise da COVID-19 sobre o bem-estar mental dos profissionais da aviação por ocasião do retorno às operações.
A pandemia da COVID-19 configura-se como um evento que acarreta elevados níveis de estresse, tendo em vista seu impacto na saúde e seus efeitos econômicos e sociais. A alteração brusca da rotina na vida pessoal e profissional, o isolamento social, a necessidade de comportamentos protetivos, as dificuldades financeiras, a preocupação com a própria saúde e de entes queridos, afetaram a todos nós, individual e coletivamente, de diferentes maneiras e para alguns as restrições e mudanças impostas pela crise sanitária trouxeram sofrimento significativo.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), depois de conviver meses com alterações na rotina e incertezas, as pessoas estão se sentindo mais cansadas e menos motivadas a seguir comportamentos preventivos, fundamentais para conter a propagação do vírus. A fadiga pandêmica, de acordo com esta organização, é uma reação natural e esperada tendo em vista a prolongada duração da crise e as dificuldades associadas. No entanto, é uma séria ameaça para o controle da pandemia.
Os aeronautas enfrentam no dia a dia de suas atividades diversos estressores inerentes à atividade aérea, porém, durante a crise sanitária, fontes adicionais de estresse foram identificadas. Além dos estressores diretamente associados à pandemia como, por exemplo, o risco de exposição ao vírus, fontes potenciais de estresse se relacionam às mudanças de procedimentos e protocolos ocorridas no ambiente operacional; à preocupação com a perda de proficiência após período de afastamento da atividade aérea e à incerteza sobre a situação profissional futura.
Estresse é consequência do ato de viver, é a resposta fisiológica às demandas do ambiente e necessário para a realização de qualquer atividade, pois nos estimula e aumenta nossa capacidade de reação. Entretanto, se as demandas da situação forem excessivas ou ultrapassarem nossa capacidade de enfrentamento, nosso bem-estar e o desempenho de nossas tarefas serão afetados.
O estresse continuado por longo período vem acompanhado de reações físicas, emocionais e comportamentais e alguns sintomas incluem sentimentos de medo, raiva, tristeza, irritabilidade; mudanças no apetite; tensão muscular; dificuldade para dormir; dores de cabeça e dificuldade de concentração. O desempenho da tripulação pode ser afetado de várias maneiras, em situações de estresse elevado ou prolongado. A presença de preocupações com um familiar portador da COVID-19 ou dificuldades financeiras, podem capturar a atenção do tripulante e contribuir para distração na realização de suas tarefas.
A capacidade de decisão também pode ser degradada pelo estresse cumulativo e há o risco de se tomar decisões de modo acelerado e reativo, desconsiderando informações e consequências indesejadas sobre a situação envolvida no processo decisório. O risco de fadiga é outro aspecto a ser observado no atual cenário da aviação. A adoção de novos procedimentos, protocolos e medidas sanitárias para controle da COVID-19 acarretou a introdução de novas tarefas e o aumento da demanda cognitiva sobre os tripulantes, o que contribui para uma jornada de trabalho mais fatigante.
Em alguns destinos, podem ocorrer períodos de serviço prolongados em função de exigências sanitárias para entrada e saída de aeroportos ou país. Além disso, a qualidade e duração do sono também podem ser prejudicadas por fatores não relacionados à escala, mas pelo estresse e preocupações decorrentes da crise sanitária. As novas realidades operacionais combinadas com o estresse relacionado à pandemia destacam a importância de se reforçar as estratégias, individuais e organizacionais, para a promoção do bem-estar que ajudarão as tripulações a enfrentar os desafios dos dias atuais e evitar impactos negativos na saúde e segurança das operações.
A Organização Mundial de Saúde define saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças ou enfermidades. O bem-estar é um estado dinâmico no qual temos a experiência subjetiva de satisfação com a vida, de autonomia, de se reconhecer capaz de lidar com as tensões do dia a dia e estabelecer relações gratificantes com o meio. Esta abordagem biopsicossocial de saúde permite pensar a nossa saúde em termos do equilíbrio dinâmico de três pilares interdependentes: o biológico, o psicológico e o social.
Cada dimensão separada é importante e faz parte de uma abordagem holística que apoia uma vida equilibrada. A saúde física é afetada pela alimentação, atividade física e sono restaurador. Rápidas mudanças sociais e estresse prolongado são fatores que colocam em risco nossa saúde mental e nossas redes de apoio, família e amigos, e influenciam nosso bem-estar social.
Após meses de pandemia, é extremamente relevante cuidar de nosso bem-estar e aplicar estratégias para lidar com o estresse prolongado para fortalecer nossa capacidade de resiliência, até a chegada de melhores tempos. Sabemos que nem todo mundo foi impactado pela pandemia da mesma forma e cada pessoa desenvolveu suas estratégias próprias de enfrentamento, todavia algumas orientações da perspectiva holística da saúde poderão contribuir para manter ou melhorar o estado de bem-estar mental neste cenário inédito que estamos vivendo.
Pratique o autocuidado em todas as dimensões, incluindo nutrição saudável, atividade física regular, obtenção de sono suficiente, técnicas de relaxamento / meditação e interação com sua rede de apoio pessoal. Como me sinto?
Esteja atento às suas emoções, sentimentos e pensamentos. Lembre-se que é natural que o seu humor e a sua motivação possam flutuar. Alguns dias serão melhores do que outros. Acredite na sua capacidade para lidar com esta situação. Que estratégias você utilizou que o ajudou a ultrapassar situações difíceis em sua vida anteriormente? Use-as. Viva um dia de cada vez.
Concentre-se no aqui e agora e no que, neste contexto de incertezas, você pode controlar. Use o humor. O humor é uma estratégia saudável para lidar com situações difíceis, contribui para aliviar tensões, controlar melhor os pensamentos e melhorar os relacionamentos. Não significa falta de respeito com a gravidade da situação. Dose a consulta de informações sobre a pandemia. Consulte apenas fontes de informação fidedignas e atualizadas. Identifique os fatores relacionados ao trabalho que aumentam seu estresse durante a pandemia: preocupação com o risco de exposição ao vírus; preocupações com familiares, carga de trabalho, incerteza profissional, passageiros indisciplinados que se recusam a adotar protocolos sanitários durante o voo.
Converse com familiares ou amigos sobre suas preocupações, como você está se sentindo ou como a pandemia da COVID-19 está afetando você. Falar sobre como nos sentimos e como estamos a experienciar a situação pode nos ajudar a perceber que não estamos sozinhos e que os outros nos compreendem. O controle da exposição ao coronavírus exige de todos nós, individualmente, mudanças comportamentais e práticas de autocuidado. No entanto, a superação desta pandemia só será possível com o esforço de toda a coletividade.
Durante a crise da COVID-19, questões relacionadas ao desempenho humano necessitam de especial atenção pelas empresas tendo em vista o risco aumentado de fatores de estresse e fadiga pessoal.
Neste sentido, aumentar a conscientização dos profissionais sobre o risco de fadiga no atual contexto operacional; fornecer informações sobre o gerenciamento dos estressores adicionais que afetam o estado de alerta; promover um ambiente de confiança no qual os tripulantes se sintam confortáveis para fornecer relatórios de fadiga, que permitirão a identificação e mitigação de novas fontes de fadiga, assim como relatar quaisquer problemas de bem-estar para que possam receber o suporte que precisam, são algumas iniciativas que contribuem para promover, manter e apoiar a saúde mental e o bem-estar do pessoal da aviação e a segurança operacional neste tempo desafiador.
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Sobre o Autor
Márcia Regina Molinari Barreto é Psicóloga, Mestre em Segurança de Aviação e Aeronavegabilidade Continuada – Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Professora do Curso de Ciências Aeronáuticas da Universidade Estácio de Sá de 2003 a 2010. Experiência de mais de 25 anos em Psicologia aplicada à segurança de voo e do trabalho, atuando principalmente nas seguintes áreas: investigação e prevenção de acidente aeronáutico, vistoria de segurança operacional, suporte psicológico após-ocorrência de acidente e treinamentos na área de aviação. Membro da European Association for Aviation Psychology (EAAP), Sócia fundadora e atualmente Presidente da Associação Brasileira de Psicologia da Aviação.
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Texto originalmente publicado no ASAGOL Safety News 12. Para ler a edição completa clique aqui.
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